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Cabo Espichel,

cabo dos trabalhos

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Não, esta não é uma história que se conte em três penadas. Começa assim: no fim da estrada, está património classificado a desabar, fruto de décadas de abandono. Chega-se ao Santuário de Nossa Senhora do Cabo, estaciona--se no parque de terra batida, e segue se pelo pátio que nos abraça, belíssimo, embora já sem forças. Percorre-se o terreiro, arcada após arcada, inebriados pela simetria e por duas línguas de portas e janelas emparedadas. Parece um monumento mudo. Ao fundo, na igreja, as pinturas dos tetos têm cor (foram restauradas em 2001), mas as regras atuais não deixam fotografar. Passamos depois para a parte de trás do conjunto, junto à beira da falésia onde tudo começou, junto à Ermida da Memória. É um suspiro branco com dois painéis de azulejos parcialmente destruídos no exterior. Lá dentro, dez painéis de azulejos forram as paredes e contam a história das origens daquele promontório a que os antigos chamaram Barbárico. Mas a porta está fechada e cá fora o painel de informação há muito foi arrancado da base de betão.


Este é o cenário que há décadas se repete no Santuário do Cabo Espichel, em Sesimbra. O complexo remonta ao século XVIII, embora o culto e a ermida sejam anteriores (século XV ou mais remotos). O conjunto da Igreja de Nossa Senhora do Cabo, a casa dos círios (hospedarias) e terreiro está classificado como imóvel de interesse público desde 1950, mas os visitantes que chegam ao local tiram fotografias e seguem viagem. Não fora a paisagem e pouco os prendia ali. Nesta tarde de agosto, não há muita gente. Famílias com o fato de banho ainda húmido e areia nos pés assomam ao precipício, espreitando a vista e esperando o pôr-do-sol. “Vimos cá todos os anos e é sempre a mesma coisa. Mas gostamos sempre de vir”, reconhece Ana Maria Matos, que, com o filho e o marido, cumpre o ritual de férias. Diz que “claro’’ que gostava de ver o local mais cuidado, com informação, mas, apesar de ainda não ter perdido a esperança de que isso aconteça, sugere que hoje “há o Google” e qualquer pessoa com curiosidade se pode informar. Duas amigas ucranianas têm outra opinião: “Fomos visitar o farol, que tem umas visitas muito giras para fazer com as crianças, depois viemos aqui e não temos muito para ver, tirando a igreja”, diz Natália. Não deixam de sorrir enquanto as abordamos à porta da casa de banho unissexo que a Câmara Municipal de Sesimbra (CMS) ali instalou – há uns anos, diz o senhor João, que há 30 anos ali vende búzios e conchas aos turistas e já se habituou a não ter água canalizada nem eletricidade. Também tem a concessão da rulote que vende bifanas, farturas e churros, que só se anima verdadeiramente aos domingos com a chegada dos grupos de motards, “malta da bifanazinha, da cervejinha”.


Há uma certa resignação nos que ali regressam. Um grupo debruça-se sobre o placard que o sol e o vento vão devorando, no topo da ala norte das hospedarias. A informação em português já desapareceu, resta o inglês. “Não se percebe nada, está feito para os estrangeiros”, atira uma das visitantes. Mas ali nem os estrangeiros se safam. Christophe e Suzane são franceses e parecem atordoados. Vêm da Casa da Água num andar irregular, parando e olhando e voltando a olhar. Um lugar “ magnifique” tão degradado. Andam perto dos 70 e ainda conseguem ser surpreendidos. “É um monumento especial, sem dúvida, tínhamos visto fotografias mas não esperávamos encontrar tanta degradação” dizem-nos.


Seguem para o pôr do-soL No local, multiplicam-se as placas de perigo que a estrada acaba, a falésia é alta e há ventos fortes, e quase vemos a placa imaginária: perigo, que o edifício um dia destes cai-nos em cima.
A história de degradação e de projetos por cumprir tem largas dezenas de anos. “Tem sido muito difícil fazer ali uma intervenção [nas hospedarias], desde os anos 60 já houve várias iniciativas, todas elas foram fracassando por uma razão ou por outra. Nos anos 60, foi quando se foi mais além na recuperação, e chegou a haver obra, patrocinada pela Gulbenkian”, explica Armindo Pombo, arquiteto da autarquia de Sesimbra que desde os anos 90 acompanha os projetos para o cabo Espichel. Ajuda-nos a puxar o fio da meada deste enorme novelo. Começa por explicar que o cabo Espichel é composto por várias partes: A Ermida da Memória, a Igreja de Nossa Senhora do Cabo e as hospedarias, do século XVIII (ala norte e ala sul, e fixe isto, que é importante para o resto), e um conjunto de equipamentos que funcionavam em paralelo, como a Casa da Água, o aqueduto e o Cerrado da Horta.


A Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) apoiou a obra através de um subsídio do Serviço de Belas-Artes da FCG. Na altura, um conjunto de influentes arquitetos (entre os quais Keil do Amaral) alertaram para o “esquecimento” daquele património, que consideraram “uma peça singular no nosso modesto património arquitetónico”. Os trabalhos de reabilitação avançaram nessa altura e prolongaram-se até depois do 25 de Abril, impedindo a ruína das hospedarias, refere Armindo Pombo. Aintervenção, feita pela Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), focou-se na consolidação das fachadas e dos telhados das duas alas das hospedarias. As casas foram depois ocupadas por famílias de Sesimbra, que ali fixaram segunda residência e acabaram por ser expulsas à força, já nos anos 90. Seguiu-se o emparedamento do complexo: “A partir do momento em que nós abrimos ali um buraco, em dez minutas estão 50 pessoas lá dentro”, ironiza o arquiteto.


Construídas para o alojamento dos romeiros que acorriam ao importante culto da Senhora do Cabo, as hospedarias foram feitas todas segundo a mesma planta, o que explica a uniformidade das fachadas. “As hospedarias nunca foram propriedade do Estado”, conta o arquiteto. “Foram sempre pertença ou dos romeiros ou da Confraria de Nossa Senhora do Cabo. Nos ano 80, a igreja registou as hospedarias da ala norte e sul a seu favor.” Na década de 1990, depois de várias tentativas falhadas de intervir no local, avançou-se para o projeto de uma pousada da Enatur. “E então o que é que foi feito? A Confraria cedeu ao Estado a ala norte, para fazer a tal pousada, com a contrapartida de recuperar a ala sul e entregá-la recuperada à Igreja, para turismo religioso.” O decreto 40/95 de 18 de novembro estipulava então um prazo de dois anos para concluir as obras, que incluíam a reabilitação das hospedarias e da igreja. Os ventos de esperança sopraram nessa altura: a imprensa anunciava o investimento de um milhão e meio de contos e a criação de uma pousada com 40 quartos. Entre 1997 e 2001, a Igreja de Nossa Senhora do Cabo foi restaurada pela DGEMN, mas a pousada não saiu do papel e o impasse das hospedarias chega aos dias de hoje.


Em 2016, com a integração do Santuário do cabo Espichel no programa Revive – em que o Estado, através dos Ministérios da Economia, da Cultura e das Finanças, concessiona a privados, para fins turísticos, imóveis públicos mediante a sua reabilitação chega um novo capítulo desta história. Armindo Pombo explica que, para a câmara poder dinamizar o processo, teve de comprar ao Estado a ala norte das hospedarias por 321 mil euros. “Parece não fazer muito sentido, mas teve de ser assim. A câmara comprou a ala norte, ainda por cima com o ónus que o Estado tinha em relação à Confraria para reabilitar a ala sul”, explica o arquiteto. Mas a história não acaba aqui e, para poder dinamizar todo o processo, a autarquia teve de fazer um protocolo com Confraria, para integrar a ala sul no Revive. “Com a contrapartida depois de termos de recuperar cerca de metade da ala sul para o tal compromisso inicial que havia com o Estado”, enquadra. Ou seja, as duas alas das hospedarias entrarão no Revive, sendo destinadas ao futuro empreendimento turístico a concessionar a privados toda a ala norte e parte da ala sul, sendo a restante entregue à Confraria, após reabilitação. O protocolo de cooperação entre a autarquia e a Confraria de Nossa Senhora do Cabo foi assinado a 30 de agosto de 2018.


O Ministério da Economia esclarece, em resposta enviada ao DN, a venda da ala norte à autarquia de Sesimbra: “Para concretização das obras e do Revive, foi decidido que a operacionalização de procedimento é conduzida pela câmara, razão pela qual se fez a transferência da propriedade, sempre tudo em articulação com a Igreja.” E revelou que o concurso do Revive para o Santuário do cabo Espichel será lançado em outubro próximo, por um prazo de 50 anos, remetendo a informação sobre o valor-base de concessão, bem como os termos de referência da mesma – que detalham toda a intervenção no local –, para a altura do lançamento do concurso. No site do Revive, é referido que “a área a afetar a uso turístico é a ala norte das antigas hospedarias”, embora a planta assinale parte da ala sul. Diz também que 66 é o número estimado de quartos para o complexo turístico.


Armindo Pombo está otimista. “A câmara e o Turismo de Portugal tiveram uma intervenção muito importante porque conseguiram sentar à mesma mesa toda a gente que estava envolvida nisto, desde o Parque da Arrábida, o Instituto de Conservação da Natureza, a Direção-Geral do Património Cultural, Direção-Geral do Tesouro, uma série de entidades, e a Igreja, claro”, refere, salientado que “todas as entidades têm a sua lógica própria” o que se reflete em exigências várias e negociações demoradas – por exemplo, a Igreja opõe-se à instalação de bares no local e o Ambiente já vetou projetos de saneamento. Além disso, “é uma operação do ponto de vista financeiro muito pesada, por isso é que todas as tentativas têm, de uma forma ou de outra, esbarrado nessa parte”, assume.


Também para este ano, a Câmara Municipal de Sesimbra estima avançar com a recuperação do aqueduto, entre a Casa da Água (reabilitada em 2017) e a povoação da Azoia. Estes equipamentos, bem como o Cercado da Horta e “uma série de terrenos à volta das hospedarias”, foram entretanto doados à autarquia em 2008 pelo conhecido empreiteiro da Margem Sul António Xavier de Lima (falecido um ano depois).
A concretizarem-se, é desta que o Santuário do Cabo Espichel recebe as tão esperadas obras de roqualificação. Mas há que aguardar pelos próximos capítulos.

In Diário de Notícias, 31-8-2019



 

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